Um defunto? Na minha escola, não!



À escrivaninha. 26°C lá fora. Noite agradável, com céu estrelado coroando o fim de domingo.

Este post participa do projeto *BEDA, em que me propus a escrever sobre livros e literatura durante todo o mês de agosto.

Para o sexto post participante do projeto, vou contar uma experiência inusitada ao sugerir uma obra literária em um dos colégios em que trabalhei.

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.

Memórias Póstumas de Bráz Cubas, Machado de Assis.

Quem conhece a obra citada, sabe que Machado de Assis criou um narrador – Brás Cubas, que resolve contar sua vida depois de morto. É a história de um morto que escreve suas memórias.

Assim, já que não pertence mais ao mundo terreno, o narrador situa-se além de nosso julgamento e não está preso a nenhum código moral ou social. Desta forma, pode livremente expor, de forma irônica, os privilégios da elite da sociedade carioca do século XIX. Isto torna-se claro para quem lê a obra.

Entretanto, quem não conhece esta obra, não deveria tecer juízos de valor a respeito dela, principalmente quando se trata de uma obra machadiana.

E a situação é mais constrangedora ainda, quando o desconhecedor da obra é uma pessoa que se intitula educadora e “dona” de uma instituição de ensino, na qual só se faz o que ela determina.

Na “minha” escola, não!

Indiquei, certa vez, a obra Memórias Póstumas de Bráz Cubas, citada acima, para meus alunos do curso de Literatura. Uma obra clássica, analisada há décadas em qualquer instituição de ensino, cujo enredo não tem nada de ofensivo, salvo para a elite criticada na obra, se fosse o caso.

Tive a infeliz ideia de ilustrar um texto, que distribuí para a turma, com uma cena do livro em que o defunto aparece deitado sobre uma mesa, cercado de velas. Foi a gota d’água!

A educadora-dona-da-escola recebeu a “denúncia” de alguns pais e veio tomar satisfações. Quando tentei explicar que se tratava de uma célebre obra de Machado de Assis, cuja narrativa utiliza um autor defunto para expor problemas de nossa sociedade que existem até hoje, ela não me deixou continuar:

Eu não quero saber de livro que tem defunto na “minha” escola! Não me interessa se é clássico, se é célebre ou o (palavra impublicável)!

Não houve argumento que a convencesse. Ficou claro que ela nunca lera Machado. Talvez , obra alguma, arrisco-me a julgá-la. E, para manter meu emprego, suspendi o trabalho com as memórias póstumas do pobre Brás Cubas.

Os pais e a educadora não foram capazes de perceber a importância de um texto, nada “defunto”. Pelo contrário, vivíssimo, que atualiza, de forma irônica, os processos em que nossa sociedade foi formada. Suas contradições e os desmandos e autoritarismos que ainda hoje estão presentes.

Brás e Machado se revirariam em suas tumbas, diante de tal insensibilidade e ignorância a respeito de um romance de tanta profundidade e sutileza.


* Este post faz parte do BEDA – Blog Every Day (April/August), um projeto coletivo em que os blogs se propõem a postar todos os dias do mês. Ele pode acontecer em Abril e/ou em Agosto.


4 comentários em “Um defunto? Na minha escola, não!”

  1. Uma pena pelos estudantes que deixaram de ter contato com a obra. Memórias Póstumas de Brás Cubas é um dos livros que me fez gostar de ler Machado de Assis.

    Abraços

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