Enigma de Capitu

À escrivaninha. 29°C lá fora. Céu continua azulíssimo e o clima está agradável. Mesmo assim, mantenho minhas pantufas rosa com cara de monstrinha, porque, do lado de dentro de minha janela, continua um frigorífico.

Este post participa do projeto *BEDA, em que me propus a escrever sobre livros e literatura durante todo o mês de agosto. 

No último clube de leitura do grupo de whatsapp mais supimpa (adoro essa palavra) do mundo, o grupo dos Valekers, conversamos sobre Dom casmurro. Obviamente as elocubrações descambaram, em certo momento, para a pergunta que não quer calar. Foi um encontro divertido e aconchegante.

Lembrei-me, então, de um outro projeto de Literatura que fiz com meus alunos, anos atrás. E, adivinhem, eles escolheram fazer um trabalho sobre o “julgamento” da mulher. É óbvio que este será o assunto deste terceiro post do projeto BETA: a questão que nunca sai das rodas de discussões literárias.

O tribunal sem veredicto

Machado de Assis criou um dos maiores enigmas da literatura brasileira: “Capitu traiu ou não Bentinho?” Em Dom Casmurro, só temos acesso à versão do marido Bentinho o obstinado, o casmurro , a qual deixa dúvidas no ar sobre a “fidelidade” da mulher.

Ultimamente ando de novo intrigado com o enigma de Capitu. Teria ela traído mesmo o marido, ou tudo não passou de imaginação dele, como narrador? Reli mais uma vez o romance e não cheguei a nenhuma conclusão. Um mistério que o autor deixou para a posteridade. (Fernando Sabino, O bom ladrão)

O mistério a que Sabino se refere decorre de uma narrativa ambígua, na qual há uma constante oscilação entre a possibilidade — ou não — de Capitu ter cometido o adultério.

Baseando-se nessa acusação eterna que recai sobre a honestidade conjugal de Capitu, meus alunos montaram um video adaptando uma HQ escrita por João Arruda e ilustrada por Vinícius Mitchellem, em que um “tribunal” discute se a moça é ou não culpada de adultério. Era um trabalho escolar, simples, mas que, a meus olhos de mestra-coruja continha um valor imensurável.

Cheia de expectativas, assisti ao vídeo. Um dos alunos assumiu o papel de advogado de Capitu, procurando ouvi-la, senti-la. Outro, o de Dom Casmurro. Nas cenas adaptadas da história em quadrinhos, as personagens eram retratadas em situações que comprovavam a acusação da traição ou inocentavam a mulher.

No final da apresentação do vídeo, na Feira Pedagógica da escola, os alunos abriram ao público a possibilidade de decidir se Capitu é ou não culpada. Fiquei pasma com o resultado. A maioria das pessoas presentes — estudantes, responsáveis e funcionários — votou pela condenação da ré! É a velha história: a mulher, silenciada no enredo, não se defende, sempre levando a culpa ao longo das gerações.

Dias depois, organizei, em sala de aula, um debate. Não ia deixar passar batido, vocês acham? Arrazoei sobre a narrativa em 1ª pessoa que configura o ponto de vista unilateral do narrador, um marido corroído pelo ciúme e pela desconfiança. Poderia se confiar em tal versão, impregnada de parcialidade?, perguntei. Continuaram achando que sim, que Capitu o traíra, que era culpada. Deus meu, até quando nós mulheres carregaremos este estigma?

Dom Casmurro é paranóico e Capitu é traíra?

Não sei. Quando dizemos que o romance é a visão doentia do narrador, somos levados a acreditar que ela não traiu? Alguém me disse, certa vez, que o romance só valia a pena se Capitu fosse culpada. Se não a hisstória ia ficar muito chata. Trair a torna mais interessante.

Há conjecturas sobre a infertilidade de Bentinho, sobre os encontros entre Capitu e Escobar, sobre a semelhança física entre o filho do casal e o amigo. Tudo narrado pelo Casmurro, não esqueçamos.

No final do debate, a minha turma, no colégio, chegou a duas possíveis conclusões baseadas em falas do próprio Bentinho durante sua narração: ele tem um transtorno psicológico e a ausência paterna pode demonstrar uma suposta homossexualidade, o que explicaria sua obsessão por Escobar.

Acho melhor parar por aqui, pois o post está imenso, e esta discussão não tem fim, concordam? Como disse uma das alunas, só saberemos a verdade se, um dia, pudermos perguntar ao próprio Machado.

Não deixem de fazer um comentário dando seu veredicto: Capitu, culpada ou inocente da acusação de adultério? (Não resisti, hahahaha)


* Este post faz parte do BEDA – Blog Every Day (April/August), um projeto coletivo em que os blogs se propõem a postar todos os dias do mês. Ele pode acontecer em Abril e/ou em Agosto.


Acompanhe também as postagens destes participantes:

Lunna Guedes

Claudia Leonardi

Obdulio

Mariana Gouveia

Ale Helga

Suzana Martins


6 comentários em “Enigma de Capitu”

  1. Eu me divirto horrores com esse livro, cara mia porque eu nunca fiz essa pergunta, aliás, eu nem a encontro na trama. O Bentinho é um personagem perturbado e me impressiona um personagem como a Capitu ser ícone feminista, talvez por tudo que ela suportou de loucura. Mas para mim, só penso no inferno que seria a vida dessa personagem, já que tudo que temos é voz do maluquinho de estimação do Machado.

    Responder
    • Pois é, com tantos temas para serem abordados na obra, como a vocação sacerdotal imposta às crianças, o agregado, as críticas à sociedade da época, entre outros, o povo se preocupa se a mulher traiu ou não o psicopata.
      Mas em uma coisa a gente concorda: Machado é genial.
      Beijo, menina

      Responder
  2. Acredito que Dom Casmurro seria genial de toda forma, sendo a traição real ou não. A narrativa unilateral a condena. Eu, pessoalmente, acredito que, traindo ou não, Capitu não mereceria o tratamento que recebeu, tratamento que joga por terra toda a amizade da infância e os arroubos do primeiro amor. É injusto, mas faz parte da visão da época que infelizmente predomina até hoje.

    Pelos relatos que você nos apresenta, suas aulas devem ser incríveis. Gostaria de ter tido uma professora assim (embora tenha ótimas lembranças de uma das minhas professoras de Língua Portuguesa durante o Ensino Fundamental II, não tivemos muito tempo para receber aulas de qualidade, uma vez que esta ótima professora era substituta e nós nunca chegamos a conhecer nossa professora oficial – sempre pulando de uma substituta para outra). Seus alunos tem muita sorte.

    Responder
    • O tratamento não mudou, é universal, e isso que torna a obra de Machado tão atual. Por que, em pleno século 21, ainda se levanta uma questão dessa?
      Obrigada pelas palavras carinhosas. Eu amo Literatura e isso transparecia nas aulas e contaminava os alunos.
      E vamos de BEDA.
      Beijo, menina

      Responder

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.