À escrivaninha. 32°C lá fora. Sensação térmica de 38º, estão entendendo? Tarde nublada, abafada, mas um ventinho ientra pela janela. A claridade e o mormaço do sol, escondido sob as nuvens, esquenta o teclado nesta semana pré-Carnaval.
Anos atrás, quando ainda lecionava, eu me perguntava se não estava quixotescamente a combater moinhos de vento. Fazendo um balanço do perfil de meus alunos adultos do turno da noite, via que, embora muitos tivessem força de vontade para concluir os estudos, as condições não lhes eram favoráveis. Esbarravam em tantas dificuldades que vários desistiam no meio do caminho. Eles dizem: “vou parar. Não tá dando mais. Tá difícil.”
Eu ouvia suas razões e preocupações e tentava compreendê-los, e, principalmente, estimulá-los, dizendo-lhes que eram capazes, que não havia idade para aprender, que não deviam perder a esperança, que a força de vontade deles poderia levá-los a vencer as barreiras. Coisas assim. Às vezes parecia que falava comigo mesma…
Queria tanto que aprendessem e se tornassem pessoas melhores, solidárias, capazes de enfrentar o mundo, a vida com competência e dignidade. Mas, quanta dificuldade… Difícil a vida que levavam, e difíceis os conceitos que não conseguiam aprender.
Aula de Português
Carlos Drummond de Andrade
A linguagem
na ponta da língua,
tão fácil de falar
e de entender
A linguagem
na superfície estrelada de estrelas,
sabe lá o que ela quer dizer?
Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,
e vai desmatando
o amazonas de minha ignorância.
Figuras de gramática, esquipáticas,
atropelam-me, aturdem-me, seqüestram-me.
Já esqueci a língua em que comia,
em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a prima.
O português são dois; o outro, mistério.
Às vezes esquecia-me, ou, pelo menos, deixava um pouco de lado, as noções gramaticais, ortográficas e sintáticas, que, como já dizia Drummond, são “figuras esquipáticas que confundem, atropelam, aturdem”, e passava a utilizar textos e assuntos que, de alguma forma, pudessem responder algumas de suas inquietações.
Textos sobre família, valores morais e vida em sociedade. Depoimentos de experiências bem sucedidas de outros adultos que, como eles, enfrentaram o desafio de terminar os estudos e lutaram por uma vida melhor. Falava também sobre fé, esperança e paz. Sobre pedir força e coragem para enfrentar a vida com serenidade.
Não era fácil para aqueles alunos e alunas produzirem textos escritos. Mas, o preconceito e a desigualdade social, a falta de oportunidades e as injustiças, estas, sabiam dizê-las muito bem. A dificuldade para ler e escrever criticamente não significava que sua leitura de mundo não era impressionante.
Muitos alunos não tinham contato direto com a família. Vieram para o Rio trabalhar e não viam os parentes há muito tempo. e como isso lhes fazia falta. Certa feita, uma aluna chorou em sala pois sua mãe, que não via há anos, falecera em Minas e ela não pôde viajar, porque não tinha dinheiro e, mesmo que tivesse, a patroa não a deixaria sair.
Não era bom vê-los desistir, às vezes, quase no final do ano. Encaravam um mundo cheio de dificuldades, lutas, fracassos, e pouquíssimas vitórias. Observava em seus rostos cansados, a tristeza, o sono, a fome, depois de um dia de trabalho, e compreendia o sacrifício enorme para virem estudar todas as noites. Com frequência havia alguém dormindo sobre a carteira.
Pode ser que eles não tenham conseguido aprender a matéria que lhes tentava ensinar, mas eu, com certeza, aprendi a difícil lição de viver.
Ainda hoje me pergunto: quem precisava aprender ditongos e tritongos quando havia um hiato em suas vidas?
O Português? São dois…
Foto de Jeffrey Hamilton na Unsplash