À escrivaninha. 27°C lá fora. Céu azul limpíssimo. Nem uma nuvenzinha sequer para sugerir chuva. Esses dias têm sido frios e nublados. Hoje o sol veio avisar ao inverno que ainda não chegou a hora dele.
Reiniciei o projeto Roda de Leitura que realizei durante tantos anos. Agora, batizei-o de “Só Românticos” porque me proponho a trabalhar apenas com romances de temáticas universais ligadas ao amor e ao relacionamento afetivo.
Assim, a cada mês, eu me reúno com pessoas interessadas em conversar sobre uma obra comigo e as horas passam rápido. Os textos são lidos em voz alta por mim e um bate-papo a respeito do seu enredo inicia-se em seguida.
Não se trata de uma aula ou de uma conferência, mas de uma conversa informal. O texto literário é muito rico pois oferece vários níveis de possibilidades de enfoque.
Clarice
Clarice Lispector abriu os trabalhos na abertura do projeto. Lemos dois capítulos de seu romance “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres” e mantivemos um diálogo interessante sobre eles.
Embora escrito em 1969, a história deste romance ainda tem um grande apelo. Esta obra foi extremamente ousada ao propor a revolução feminista para o lado de dentro da mulher. Temas como a independência feminina e o aprendizado do amor são apresentados no enredo.
Acompanhamos a lenta iniciação de uma mulher e seu amado quando ninguém mais tem paciência para o tempo do outro e se vivem amores supérfluos. E algo difícil não só para a literatura da época, mas ainda nos dias de hoje. O prazer sempre foi um tabu para a mulher, e escrever ou falar sobre isso, ainda hoje é problemático.
Loreley
O livro narra a trajetória de Loreley, uma professora de crianças do ensino primário que decidiu se mudar de onde morava, em Campos, para morar sozinha em Ipanema, no Rio de Janeiro, em busca de uma liberdade que ela só poderia ter se vivesse em um lugar totalmente novo e afastado de sua família. No Rio, Loreley começa a construir a sua vida, começa a trabalhar e conhece o professor de filosofia Ulisses, que transformará a sua realidade.
A protagonista vive sozinha em seu apartamento e quase não tem contato com pessoas. O único contato humano é com as crianças e com os funcionários da escola onde trabalha, com a empregada doméstica, a qual cuida do apartamento dela e com uma amiga cartomante. Lóri é uma pessoa extremamente solitária e que tem muita dificuldade de fazer e de manter relações pessoais.
É muito difícil viver e se relacionar com outras pessoas e aceitar a sua condição humana. Loreley sente uma profunda dor existencial, pois acredita que não sabe como viver no mundo, como as outras pessoas vivem. Quer tentar, de fato, viver a vida de uma maneira nova, transformar-se, buscar a liberdade de ser plenamente quem ela gostaria de ser.
E é exatamente isso o que acompanhamos no romance: seu desenvolvimento, sua aprendizagem e sua busca para conseguir ser a melhor versão de si mesma.
Linha do horizonte
Nós lemos dois capítulos do livro “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”, cujos “títulos” são “Nessa noite Lóri ficou de vigília” e “Aí estava o mar”. No trecho há uma cena transformadora na vida de Lóri. Como uma decisão de extrema coragem, ela decide tomar um banho de mar, de madrugada, quando não havia ninguém na praia. Esta pequena ação pode parecer simplória para muitas pessoas, mas significou tudo para ela: um ato de coragem e um avanço na sua aprendizagem dos prazeres.
Esse é o momento bem intenso, no romance – quando a Lori entra no mar. É uma tentativa de conexão com o natural, de total encontro com a natureza, com o orgânico, com ela mesma. Lóri se conecta com ela mesma e isso pode ser visto como um reconhecimento daquele outro, que já está ali do lado dela.
E era isso o que lhe estava faltando: o mar por dentro, como o líquido espesso de um homem. Mergulha de novo, de novo, bebe mais água, agora sem sofreguidão, pois já conhece e já tem um ritmo de vida no mar.
O que não conseguimos ver além da linha do nosso horizonte? O desejo de mudar a maneira de olhar o mundo, de refletir nossas buscas pessoais. Lori entra no mar, em uma autoanálise intensa, uma busca incessante pelo reconhecimento de si mesma.
Ulisses
O personagem Ulisses parece ser uma proposta de diálogo que a Clarice faz, durante o percurso que Loreley faz da dor ao prazer, para que ela possa aprender a viver de uma forma mais alegre e menos sofrida.
Lóri só consegue parar de compreender sua vida apenas como sofrimento e conhecer outra realidade, na qual a felicidade, a alegria e o prazer são possíveis, quando conhece e recebe a ajuda de outro ser humano.
Ulisses representa um guia no percurso da aprendizagem de Lóri. Assim, entendemos que o convívio social e a ajuda de outras pessoas são fundamentais, para que indivíduos que sofrem muito com suas vidas possam ter a possibilidade de aprender a valorizá-la e sentir, também, alegria e prazer.
No romance, o intenso fluxo de consciência da personagem Loreley vai, aos poucos, sendo substituídos pelos diálogos entre ela e Ulisses. Os diálogos são muito importantes porque é por meio deles que ocorrem os ensinamentos de Ulisses para Lóri e ela conhece novas formas de viver e de experienciar a vida e ela aprende a viver.
O diálogo é, portanto, essencial para que o desenvolvimento e a transformação aconteça na vida de Loreley.
Se deve viver, apesar de. Apesar de se deve comer. Apesar de se deve amar. Apesar de se deve morrer. É o próprio, apesar de que nos empurra para frente. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você. Mas aquela inteira, com a alma também. Por isso não faz mal que você não venha. Estarei esperando quanto tempo for preciso.” (Ulisses, em “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”
Desta forma, a lição que Ulisses tenta passar para ela é que sempre haverá momentos de sofrimento na vida, mas que não é por causa disso que ela deve desistir de lutar e de viver e que, muitas vezes, são as próprias dificuldades, os “apesares de” que dão forças para que se continue vivendo e lutando.
Ulisses talvez seja um pretexto para um diálogo interno. Porque a Lori está se conhecendo, não para o Ulisses. Ela está se conhecendo para ela mesma. E quando está pronta, reconhece o outro. Não é apenas uma mulher querendo se descobrir para ter uma relação com um homem. É uma autodescoberta.
Aprendizagem
A construção do relacionamento de Lóri e Ulisses ocorre por meio de um pacto que eles fazem: “Ulisses só possuirá Lóri, que já teve cinco amantes eventuais, quando esta puder entregar-se a ele de corpo e alma, numa união amorosa completa e sem reserva.
O relacionamento deles é consciente e responsável, pois desejam muito mais do que apenas sexo. Desejam completude: entrega de corpo e alma. E esta só ocorrerá quando a aprendizagem de Lóri estiver completa.
Em muitos momentos, Loreley se questiona se deve continuar ou não vendo Ulisses, porque ela se sente insegura em relação ao relacionamento deles. A relação de Lóri e Ulisses é feita apenas de encontros casuais e de conversas, não havendo contato físico, por isso ela sente medo de que Ulisses não tenha paciência para esperá-la passar por sua aprendizagem e a abandone.
O coração tem que se apresentar diante do nada, sozinho, e sozinho bater em silêncio de uma taquicardia nas trevas. E tudo era muito para um coração, de repente, enfraquecido, que só suportava o menos.
Clarice aborda uma das conquistas mais importantes na vida de um ser humano: o amor próprio. É essencial que as pessoas consigam amar a si mesmas antes de amar qualquer pessoa e qualquer coisa neste mundo. A autoestima e a valorização pessoal podem transformar positivamente a vida de uma pessoa.
Quando Lóri aprende, depois de uma longa e complexa trajetória, a amar a si própria e a valorizar a sua existência, ela pode, enfim, amar as outras pessoas e se doar para o mundo. Ela percebe que a sua felicidade também está relacionada ao quanto de si ela pode entregar aos outros e diz que o seu caminho são as outras pessoas, que isso é a essência de sua vida.
Amor
Só por meio do amor é possível alcançar a melhor forma de experienciar e de valorizar a vida. Lori sse transforma, não só para o Ulisses, a quem ama. Ela se torna plena na vida dela. Ela se reconecta com as coisas que deseja. Ainda continua no mesmo trabalho, ainda tem a mesma vida, o mesmo homem, mas tudo passa a ter um significado diferente após uma revolução interna.
Mas também sabia de uma coisa: quando estivesse mais pronta, passaria de si para os outros, o seu caminho era os outros. Quando pudesse sentir plenamente o outro estaria salva e pensaria: eis o meu ponto de chegada.
O final das personagens Loreley e Ulisses é completamente otimista. Este desfecho feliz é muito raro nos romances claricianos e, por isso, torna-se tão importante, já que a felicidade é um dos sentimentos mais importantes da vida humana.
Então, é isso.
Você já leu esse romance da Clarice? Que impressões teve sobre ele? Conte no comentários.
Ah, e quero convidar você a ler comigo em nossas próximas rodas de leitura, sempre aos terceiros sabados de cada mês. Se você ama romances, clique no link abaixo e entre na roda.
Imagem: Editora Rocco
Próximo encontro:
17/06/2023
Obra: Jane Eyre, de Charlotte Brontë
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1 comentário em “O livro dos prazeres na roda”