À escrivaninha. 23°C lá fora. Céu azul impregnado de grossas nuvens branquíssimas. Esses dias têm sido ensolarados, fazendo-me esquecer do inverno que me enregela até os ossos.
Reiniciei o meu projeto de rodas de leitura há alguns meses. No atual Roda de Leitura “Só Românticos” discutimos obras com temáticas universais ligadas ao amor e ao relacionamento afetivo. A cada mês, eu me reúno com pessoas interessadas em conversar comigo e as horas passam rápido.
Na reabertura de minhas rodas de leitura, Clarice Lispector abriu os trabalhos com a leitura de dois capítulos do romance “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres” e mantivemos um diálogo interessante sobre eles.
A segunda reunião teve a honra de receber a escritora britânica Charlotte Brontë, com a leitura de um trecho do romance “Jane Eyre”, publicado em 1847. É sobre ele que trato neste post.
Charlotte
A escritora inglesa, é autora de Jane Eyre, Emma e O professor, entre outros. Uma das três “irmãs Brontë” – as escritoras Charlotte, Emily e Anne Brontë -, com elas publicou uma coletânea de poemas, sob os pseudônimos de Currer, Ellis e Acton Bell. Conheceu o sucesso ainda em vida e influenciou diversas gerações de escritoras. Morreu vítima de tuberculose, no início de uma gestação.
Em seu romance de estreia, Charlotte quebra paradigmas e critica a realidade vitoriana da época. A história de Jane Eyre desafia o destino imposto às mulheres e as posições sociais que elas deveriam ocupar.
A despedida
Nós lemos um trecho do capítulo 27 do livro “Jane Eyre”, em que há uma cena transformadora na vida da protagonista. Esse é o momento bem intenso, no romance – quando Jane descobre que Mr. Rochester era casado, e que sua esposa, por apresentar problemas mentais, vivia trancada na casa dele. Jane rejeita casar-se com ele, pois não aceita a condição de amante, foge da casa e da vida do seu amado, voltando a ser uma pessoa solitária, porém independente.
O trecho lido
Eu já tinha chegado à porta; mas, leitor, voltei — voltei tão decidida quanto tinha recuado. Ajoelhei-me ao lado dele; virei seu rosto da almofada para mim; beijei-lhe a face; alisei seus cabelos com a mão.
— Deus o abençoe, meu querido amo! — disse. — Deus o proteja do mal e do erro… Deus o oriente, o console… o recompense bem por sua bondade para comigo.
— O amor da pequena Jane teria sido minha melhor recompensa — ele respondeu. — Sem ele, meu coração está partido. Mas Jane me dará o seu amor, sim… nobremente, generosamente.
O sangue subiu-lhe às faces; seus olhos faiscaram; ele saltou de pé; estendeu os braços; mas fugi ao abraço, e deixei imediatamente a sala.
“Adeus!”, foi o grito de meu coração quando o deixei. O desespero acrescentou: “Adeus para sempre!”
Jane
Destacamos os aspectos da obra que mostram Jane Eyre oscilando entre as fases feminina e feminista. Em vários momentos seu comportamento alterna entre a submissão de mulher apaixonada e a condiçao de mulher decidida e independente.
Jane, apesar de possuir certa independência, refletida em seu trabalho como governanta e professora, e de defende os seus direitos como pessoa. também tem o desejo de ser amada e de se casar, que é a característica principal da fase feminina.
Este conflito interno provoca em Jane uma certa indiferença em relção aos erros de Mr. Rochester por causa do excesso de amor que sentia por ele, resultando em uma terrível decepção. Ao mesmo tempo, o excesso de razão e de moral a faz buscar a própria identidade longe do homem que amava.
Mr. Rochester
Mr. Rochester é considerado um homem crítico, arrogante e dominador, e isso pode ser reflexo dos erros cometidos em seu passado. O fato desse personagem trancar sua esposa em sua própria casa, serve, de modo indireto para Jane, como uma forma de alerta para mostrar aquela sociedade estritamente fechada em suas regras e costumes. Mostra ainda, que, apesar do verdadeiro amor que Mr. Rochester sentia por ela, ele poderia “trancá-la” (metaforicamente ou não) através do matrimônio, assim como ocorreu com sua esposa legítima.
Rochester diz: “E quando eu a tiver empolgado alegremente, para ser minha para sempre, hei de amarrá-la a uma corrente como esta. (E mostrou a cadeia do relógio). Pois é, minha querida pessoinha! Amarrá-la como uma jóia que eu pudesse perder! (BRONTË, [s.d.], p. 189).
Há outros momentos em que Rochester usa expressões dominantes sobre Jane, mesmo que de forma carinhosa e no sentido mais bem intencionado. Percebemos um desejo de “propriedade” sobre sua amada. Com isso, ele apenas aparenta ser um homem sensato e de morais corretas, mas, na verdade, quem realmente mostra uma verdadeira moral e sensatez é Jane, que recusa casar-se com um homem casado.
É notória a tentativa de Rochester convencer Jane a fazer algo que ele quer, mesmo sendo uma atitude equivocada. Mas Jane opta por seguir seus princípios e valores, que também são os princípios moralistas de uma sociedade que a condenaria se ela se tornasse amante de um homem casado.
Independência e submissão
Jane sempre quis ser vista como uma mulher livre, que podia decidir sozinha suas próprias escolhas, rejeitando ser um objeto passivo e manipulável. No entanto, apesar de toda essa liberdade e independência conquistada, ela também se deixa submeter em vários momentos na obra.
Mesmo sofrendo, ela rejeita casar-se com ele, deixando o amor de lado e seguindo a razão. Jane vai contra a sociedade ao mostrar que não depende de ninguém, principalmente de um marido para poder sobreviver, resultando na sua sobrevivência por conta própria. Ao mesmo tempo, está seguindo regras sociais que condenariam uma mulher que ousasse ter um relacionamento com um homem casado.
Apesar de muitas atitudes dessa personagem serem consideradas avançadas, à frente do seu tempo, ela deixa evidente que, para ser uma mulher “ardente e anelante” precisaria ter um amor. Com isso, Jane mostra que ainda tem atitudes que a tornam uma mulher como as de seu tempo, que para ter perspectivas na vida e uma vida não solitária necessita de um marido.
E o final desta personagem no romance é muito simbólico, pois, analisando-o socialmente, vemos que Jane aceita adequar-se aos valores e padrões de uma sociedade patriarcal, ao se casar com Mr. Rochester, dedicando todo o seu tempo para ele.
Então é isso.
Você já leu esse romance da Charlotte Brontë? Que impressões teve sobre ele? Conte no comentários.
Ah, e quero convidar você a ler comigo em nossas próximas rodas de leitura, sempre aos terceiros sabados de cada mês. Se você ama a ficção romãntica, clique no link abaixo e entre na roda.
Próximo encontro:
Encontros no parque, de Hilary Boyd.
Entre na Roda de leitura “Só Românticos“.
Imagem: Jane Eyre
Oi, Beth, que bom ver você aqui.
Sim, foi uma conversa bacana, leve e, ao mesmo tempo, profunda. A trama de Jane Eyre é atemporal. Só temas universais que comprovam que ainda temos muito a conquistar.
Espero você nos próximos encontros.
Beijo, menina
Jane realmente coloca na balança a quem servir. Afinal, era o único papel feminino no séc XIX. Servir a um marido se tivesse sorte, à familia se não tivesse posses, ou trabalhar. Ser amada nem era opção, mas Jane teve essa sorte em um contexto que não agradava a si. Foi um lindo trecho o escolhido. Gerou um ótimo debate. Inclusive fazendo um paralelo aos dias de hoje. Diante de tantos abusos e feminicídios o quanto mudou do início do século XIX para o XXI?