Não preciso ler esse garrancho

À escrivaninha. 22°C lá fora. O azul do céu, através de minha janela, é a certeza de que o sol voltará a brilhar nos próximos dias. Mas a meteorologia insiste em vaticinar tempestade para mais tarde. As nuvens branquíssimas e brilhantes me prometem o contrário.

Hoje uma amiga postou a foto de duas páginas de seu diário em nosso grupo de discussão de newsletter. “Esse é meu diário pessoal, não precisa ler esse garrancho” ela escreveu, antes de reproduzir o conteúdo essencial para a conversa.

Minha primeira impressão diante da recomendação de “não repararmos nos garranchos” foi de admiração. “Que delícia ver letra de verdade”, eu disse, “A gente precisa escrever mais a mão, não é?” — a propósito, sua letra é linda, Vanessa.

Segundo ela, sua caligrafia mudou depois do Caminho de Santiago. Aliás, recomendo seus posts sobre o caminho — a gente viaja com ela, se aflige, se alegra, aprende, chora, tudo.

Lembrei-me de uma amiga de escola com uma caligrafia que não tínhamos nenhum pudor de chamar de garrancho.

Quando, por fim, terminamos o curso de formação de professores, a letra de criança não a impediu de ser aprovada em um concurso púbico. Lecionou por anos para crianças e adolescentes.

Nunca perguntamos se sofreu bulling de seus alunos.

Vejo muita utilidade e emoção na escrita à mão. O braço ligado ao corpo passando para o papel o que vem do coração, ou da mente, como queira.

Imediatamente após digitar isso, lá no aplicativo de discussão, veio-me a ideia: “Está aí uma pauta boa para fazer um post”, digitei, olhando para a minha pilha de cadernos. E aqui estou.

Queimando diários passionais

Por anos mantive o hábito de escrever diários. Mas me desfiz deles há algum tempo. Hoje em dia, não utilizo cadernos para registrar reflexões absolutamente pessoais. Estavam se tornando passionais e cancerianos demais.

Meu diário funcionava como uma tentativa de reviver ações e palavras que me marcaram o suficiente para eu refletir sobre elas.

Ao reler meus escritos, sentia-me vulnerável, não pela caligrafia — linda, por sinal —, mas por perceber como certos fatos registrados me afetavam positiva ou negativamente. 

Eu não precisava ler aqueles garranchos emocionais. Para o bem de minha saúde mental. Por isso, queimei-os todos.

Colecionando diários funcionais

Hoje em dia, meus cadernos prestam-se para outro tipo de anotação. Eu diria que todos eles têm sua funcionalidade.

São notas que variam desde o processo criativo de meus romances, passando por avaliações críticas dos esboços dos originais e por os registros de mediação de clubes do livro, até o orçamento afetivo de minha vida financeira.

Antes de começar um projeto, dito meus pensamentos para uma nota no Evernote que, posteriormente se transformarão em posts de blogs e newsletters, em cenas de romances ou em notas de clubes de leitura.

Eu diria que a minha escrita à mão tornou-se estritamente funcional, nos últimos anos. Registros sem comprometimento emocional.

Ainda assim, acredito que a escrita à mão é necessária, útil e prática. Na hora em que vem alguma ideia para qualquer projeto que esteja desenvolvendo, um bloco de anotações é a ferramenta ideal. Tenho meia dúzia deles sempre à mão.

Quem nunca acordou com um diálogo para um personagem, ou com uma cena para o romance que está escrevendo e anotou no bloquinho estrategicamente colocado ao lado da cama?

Eu, várias vezes.

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